Há quem lhe chame a sociedade perfeita. Tanto, que o seu nome se tornou, com o tempo, o próprio significado de um extremo inatingível de equilíbrio social. Bem-vindos a uma ilha onde não há pobreza, o crime é praticamente inexistente e quase todos os cidadãos são iguais perante a lei.
Tudo começa por bater certo na geografia. Utopia é uma ilha, porém não fica longe da costa – chegou até a estar ligada por um istmo à América Latina, mas este acabou por ser escavado. Em termos de dimensão, não é grande nem pequena: 300 quilómetros de largura na sua parte mais ampla, adelgaçando nas extremidades, que quase se tocam, formando um estreito de 17 quilómetros com uma lagoa interior abrigada de tempestades. Um croissant geográfico, protegido por uma série de rochedos e baixios ocultos que só os marinheiros utopianos conhecem, o que torna praticamente impossível uma invasão marítima. Do outro lado, no Norte da ilha, encontra-se uma sucessão de portos fortificados ao longo da costa.

O urbanismo foi pensado ao milímetro. Há 54 cidades, mais ou menos idênticas e equidistantes, acessíveis entre si com um dia de caminhada no máximo. A capital, Amaurota, também conhecida como Castelo no Ar, fica no centro. A sua planta obedece a um desenho quadrado, com três quilómetros de lado, e está rodeada de muralhas, torres e fortins. Diz-se que foi fundada pelo próprio Utopos, pai da nação utopiana.
Dinheiro, propriedade privada, riqueza e, consequentemente, pobreza, são conceitos desconhecidos para os habitantes, que trabalham apenas pelo valor do trabalho e para cumprir o seu papel na sociedade
É um país com pouco turismo, porém hospitaleiro com quem vem por bem. Os utopianos são uma sociedade pacífica, tolerante e segura, mas é importante que o visitante conheça bem os costumes e regras locais, para evitar surpresas e mal-entendidos. Desaconselha-se, desde logo, o uso de jóias ou quaisquer adornos, uma vez que o ouro, a prata e as pedras preciosas não só não têm qualquer valor intrínseco como quem os ostenta é mal visto.
O ouro é usado para fazer penicos, os criminosos são condenados a usar colares e anéis, e as pedras preciosas servem para as crianças brincarem. Dinheiro, propriedade privada, riqueza e, consequentemente, pobreza, são conceitos desconhecidos para os habitantes, que trabalham apenas pelo valor do trabalho e para cumprir o seu papel na sociedade. Isso não invalida, porém, que o país em si seja sobejamente rico (segundo os parâmetros das sociedades materialistas), graças às suas amplas reservas de ouro, que servem para contratar mercenários na eventualidade de uma guerra.

A moda é, também ela, inexistente. Toda a gente se veste de igual modo, pelo que não há alfaiates nem lojas de pronto-a-vestir – escusado será dizer, Utopia não é um grande destino de compras. Aliás, a vaidade e o consumo ostensivo fazem parte daquilo que os utopianos consideram “prazeres ilusórios”, por oposição a prazeres “naturais” como a contemplação da verdade ou a compreensão de algo, que são o derradeiro objetivo dos seres humanos.
Sobre se é ou não uma sociedade perfeita, o visitante tratará de tirar as suas conclusões. Mas convém partir ciente da ordem das coisas: os mais novos devem submeter-se aos mais velhos, as mulheres dependem da autoridade do marido e a escravatura é prática comum. Igualitarismo será assunto para outras utopias.

Utopia, a obra futurista de Thomas More sobre o conceito de sociedade perfeita, foi publicada há mais de cinco séculos, em 1516. A ilha-nação que lhe dá nome – cuja designação significa, em grego, «não-lugar» – tornou-se o exemplo perfeito, por definição, daquilo que é um lugar imaginário.
Artigo originalmente publicado na edição de janeiro de 2016 da revista Volta ao Mundo – e escrito com a preciosa ajuda do Dicionário de Lugares Imaginários, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi (ed. Tinta da China), companheiro de estrada indispensável para viagens imaginárias pelos lugares da literatura.
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