james holman // Militar, viajante, cronista // (Exeter, 1786 – Londres, 1857) //
«Apercebi-me, no alvor da minha infância, deste desejo de explorar regiões distantes, de testemunhar a diversidade exibida pela humanidade», escreveu num dos seus livros. Ironia do destino, James Holman ficou cego aos 25. Mas isso não o impediu de ver o mundo com os sentidos que lhe restavam.
Holman, tenente da Marinha Britânica em missão no Canadá, perdeu a visão na sequência de uma debilitante doença de articulações que o afastaria do serviço activo. Esperava-o uma vida relativamente confortável – porém, sedentária – no castelo de Windsor, sob a proteção social da irmandade dos Naval Knights. Mas viver de caridade não fazia o seu estilo. Ficar parado, muito menos.
A doença, entretanto, piorara. Receita do médico: viajar para França e apanhar sol. Em vez do cruzeiro no Mediterrâneo que o prescritor havia imaginado, Holman embarcou num ferry para Calais e percorreu as estradas esburacadas do pós-guerra em diligências apinhadas de gente cuja língua não entendia. «Olhem para mim em França», escreveu. «Rodeado de gente que me é estranha, invisível e incompreensível.» Estava radiante.
De caminho, foi atacado por vespas, caiu de um cavalo e foi tomado por espião. Contudo, por onde passou, James Holman encontrou sempre gente que o ajudou e em nenhum dos seus relatos menciona ter sido maltratado ou enganado
«Viajar era o que o mantinha vivo», conta Jason Roberts, na biografia A sense of the world (O viajante cego, na edição portuguesa, publicada pela Casa das Letras em 2008). A sua saúde melhorara, tal como o estado de espírito. Ao cabo de um ano, deveria ter regressado a Inglaterra. Mas decidiu prosseguir. Até Roma, Nápoles, Berna, Estrasburgo, Colónia, Amesterdão, outro ano de estrada. No regresso a casa, compilou as suas memórias em livro e, ainda antes de este ser publicado, voltou a partir.
Queria dar a volta ao mundo, coisa que, até então, pouquíssimos viajantes independentes haviam feito. Pretendia viajar o máximo por terra, por uma questão de custos, atravessando o Império Russo até Kamchatka. Daí, tentaria apanhar boleia num baleeiro para a travessia do Pacífico. O plano saiu furado: desembarcou em São Petersburgo, foi de trenó até Moscovo e de carruagem atravessou a vastidão da Sibéria, mais de 5 mil quilómetros por uma das paisagens mais duras do planeta. Chegado a Irkutsk foi interceptado pela polícia secreta do czar, tomado por espião, e escoltado à força até à fronteira polaca. Regressou a casa vencido, mas não rendido. Holman era agora uma celebridade. Escreveu mais um livro, colheu os dividendos do primeiro, e voltou à estrada.
O fito mantinha-se: circundar o globo. Acompanhou a fragata inglesa enviada para estabelecer uma colónia na ilha de Fernando Pó (hoje Bioco, na Guiné Equatorial), à boleia de um navio holandês chegou ao Brasil. Seguir-se-iam África do Sul, onde aprendeu sozinho a montar a cavalo, Zanzibar, Maurícia, Ceilão, Calcutá, Cantão, Austrália, a travessia da Tasmânia a pé, de novo Brasil e a passagem do Atlântico rumo a casa. De caminho, foi atacado por vespas, caiu de um cavalo e teve dias em que as articulações não o deixaram sequer levantar-se da cama. Contudo, por onde passou encontrou sempre gente que o ajudou e em nenhum dos seus relatos menciona ter sido maltratado ou enganado.
A sua saúde melhorara, tal como o estado de espírito. Decidiu dar a volta ao mundo. «Viajar era o que o mantinha vivo», conta Jason Roberts, na biografia A sense of the world
Em 1832, de novo em Inglaterra, retomou a escrita. O interesse do público, esse esmorecera, surgiram até vozes cépticas quanto às suas proezas (ou a sua real relevância: afinal, se «até um cego» conseguia…). Em 1840, partiu para o Mediterrâneo e Médio Oriente, com Portugal na rota, bem como Turquia, Síria, Terra Santa, Líbia, Bósnia, Montenegro, Hungria. Esteve seis anos fora. No regresso, ninguém quis saber dos seus relatos.
Morreu aos 70, uma semana após concluir a sua autobiografia. Sozinho, esquecido, na obscuridade. Quanto ao livro, nunca viu a luz do dia. A história ficou por contar até 2006, ano em que Jason Roberts publicou O viajante cego, uma obra tão assombrosa como inspiradora. Holman, cego, só e a contar tostões, viajou 400 mil quilómetros, o equivalente a dez voltas ao mundo. Ou uma ida à Lua. Mais do que homem algum antes de si havia viajado. Mesmo hoje, poucos são aqueles que se podem gabar de ter visto tanto mundo.
Artigo originalmente publicado na edição de setembro de 2016 da revista Volta ao Mundo